segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Conto de Terror # 1 (5.ª Parte)

Godofredo Singelo. De nome apenas. Porque tudo neste monstro se complexificava à medida que o íamos conhecendo.
Apareceu vindo do nada. Para o nada ia.
- Um homem sem objectivos não pode ser feliz, apregoava o meu salvador.
Godofredo esboçava um sorriso e, de uma forma subtil e ardilosa, refugiava-se no silêncio como melhor estratégia de defesa.
Conhecemo-nos numa feira de Primavera. O sol rompia ousado por entre o imenso verde das folhagens e com os reflexos, o cheiro da relva, o chilrear de pássaros e passarinhos, tudo parecia mais bonito e possível.
Chocámos ofuscados pela claridade e depressa o meu salvador fez as apresentações. Após uma breve troca de cumprimentos, o meu salvador convidou-o para nossa casa... eu disse nossa, não disse? É incrível como posso pensar assim, depois de tudo o que se passou... mas enfim... para avançar com a minha narrativa, que já vai longa, posso afirmar que o senhor Godofredo Singelo se mostrou um perfeito cavalheiro. Inteligente, culto, atento, observador. Nas primeiras semanas de convivência encantou mais o meu salvador do que foi encantado, todavia, o fascínio era recíproco. Muitos dos jantares no grande salão terminavam já depois do sol renascer, envolvidos em fumaradas pouco inocentes e embebidos numa amizade crescente e poderosa. Era como se aquelas duas figuras potenciassem pelo convívio, o melhor de cada um. Mal percebia eu que causavam também uma estimulação da maldade escamoteada de ambos.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Conto de Terror # 1 (4.ª Parte)

Depois desse dia nada foi igual. O final da minha infância aconteceu nessa madrugada e não em orfanatos que percorri até vir para aqui, quero dizer, para ali... é estranho.... ainda agora, sentada nesta carruagem, tenho dificuldade em situar-me. Ainda vivo naquele quarto manchado de sofrimento ou percorro uma nova oportunidade na minha vida?
Já não tenho medo dele. Daquele a quem chamo salvador. Criei uma resistência forte ao seu poder de tentação malvada. Já não temo o senhor que deixava as mulheres enlouquecidas pelo toque gentil e os homens loucos de raiva por não serem como ele. Destemido, frio, poderoso. O meu salvador causava verdadeiras cenas de amor-ódio entre casais e apaixonados.
Quando o conheci, carente que estava, abracei-me à lembrança do meu pai, às saudades do colo da minha mãe. Nele reencontrei o sossego que tinha sido mutilado tão precocemente. Com ele voltei a falar, a soltar as primeiras risadas após um interregno de vários anos. Voltei, por breves e já esquecidos instantes, a ser feliz. Não da forma inocente que havia sido, mas vivendo uma felicidade reconquistada após uma perda. Podia ter sido tudo bastante mais simples se não tivessem acontecido algumas peripécias que o transformaram num homem temível. Podia ter sido tudo mais simples se não tivéssemos conhecido Godofredo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Conto de Terror #1 (3.ª Parte)

Eu nem sempre vivi ali. Até aos 7 anos fui feliz numa casinha de campo, acolá bem perto do lago azul de fumo, junto aos primeiros carvalhos de quem sobe a encosta pelo lado da igreja.
Recordo-me que brincava muito e sei que era feliz. Os meus pais eram o protótipo dos camponeses humildes e trabalhadores. Boa gente que ia à missa aos domingos, ajudando os mais carentes, nunca negando um caldo a um viajante mais necessitado.
E penso que foi assim que aconteceu, ou reconstruo a história da minha vida de modo a situar-me e compreender tudo o que me tem sucedido desde o tempo em que era muito alegre, despreocupada, infantil.
Ora bem... chovia muito naquela noite. O vento revoltara-se e inflingia chicotadas graves nas janelas. Pelas frestas das vidraças o frio percorria o interior da casa, nada estava seco, nada estava seguro. O meu pai mantivera-se acordado a noite toda, com medo que algo acontecesse à família. A minha mãe fizera-lhe companhia, aquecendo chás pela escuridão dentro, cantando músicas de uma serenidade fantasmagórica e indolente. Sei que conversaram muito nessa noite porque ainda hoje oiço os seus murmúrios interrompidos por risadas cúmplices e tranquilas. Sei que estavam bem na penumbra. Sei que foram assassinados em paz.
Que Deus os tenha!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Conto de Terror # 1 (2.ª Parte)

- Mafalda, tu não me vires as costas! Estou-te a avisar que a minha paciência tem limites e já há uns dias que nem me ouves! Escuta-me!!!!
Eu sei que lhe respondia como louca. Os meus gritos alterados elevavam-se sem eu decidir tal. Sentia que o som que se projectava da minha boca não fazia parte de mim. Tal como não sentia minhas as pancadas e arranhões que lhe deixavam marcas ferozes no rosto, nos braços. Apenas observava, petrificada, a minha irritação interna acudir o corpo e transformar-se numa dança tribal e violenta que frequentemente o levava a abandonar-me e a deixar-me apenas só, fechada, isolada. O meu salvador abandonava-me como se de uma fera me tratasse. Condenada à miséria de um quarto forrado de colchões de penas, plumas, nem sei. Supostamente protector, terrivelmente vazio e ensurdecedor.
Foi no silêncio daquelas paredes que deixei de ouvir. Lembro-me de ter acordado exausta uma noite e sentir um líquido quente a escorrer pelas orelhas. Sangue muito quente. A escaldar. Rebentei os tímpanos sem saber como. Senti apenas uma ligeira dor sem expressão. Não gritei porque nada me doía. Só via a camisa branca a ensopar-se de vermelho vivo. E eu a sentir-me cada vez mais morta.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Conto de Terror # 1 (1.ª parte)

Sentia que a vida recomeçara. Não do ponto zero, uma vez que vivera aquela história durante mais de treze anos e não a podia apagar da memória... longos dias, intermináveis horas. Minutos que pareciam prolongar-se entre as batidas do grande relógio da sala que, estupidamente, faziam enlouquecer os meus batimentos cardíacos. Soubesse eu o que agora conheço, jamais teria decidido ficar.
Olho-me amarga, desiludida e apavorada. Com um sentimento sufocante de ter perdido os melhores anos da minha vida naquela casa, naquele quarto... um tempo para sempre inesquecível pelo desagrado e desconforto.
Contudo, ao avançar para a claridade da literal luz do túnel, ouvindo ritmadamente os sons do comboio, dou por mim a imaginar, ainda atordoada pelo passado, como seria eu se tivesse continuado ali... sabia que vivera o que muitos só acreditam que aconteça no mais horripilante e sórdido filme de terror. E no entanto, esta tinha sido a minha história. O meu ontem coberto de vergonha e mistério, os segredos escondidos numa almofada sufocada. Um medo perturbador, incapacitante, destruidor.
Sair dali fora uma necessidade, mais do que uma opção. Não era suportável ficar naquela casa, o mesmo cenário mordazmente pacífico, a madeira sempre tão brilhante pela cera meticulosa.
Era demais!